Corpo que dorme

Gabriel Muney
4 min readApr 9, 2024

Madrugada. Não sei mais dormir. Vejo-o saber. Deve sonhar, não sei. E estou inquieto, por dentro. Só aprendi a pensar. Me calo. De repente estou sombra. Desloco o meu braço para longe. Desenrosco o meu corpo do corpo dele: estou mais desperto do que nunca. Respiro funda e silenciosamente. Sinto sede de dormir junto. Minha perna se afasta para bem longe no espaço curto entre o corpo e a parede, na cama. Me levanto. Não acorda. Se move, e não me procura. Toma o meu lugar na cama. É mesmo o meu lugar? Recosta o rosto no meu travesseiro. (Meu suposto travesseiro.) Deita e dorme e sonha sobre o lugar de minha ausência. Observo seu sono. Tenho vontade de ir-me embora. Calço os meus pés: nem mesmo os chinelos são meus. Nada é meu neste mundo. Lembro do que escreveu Joyce. Mantenho as paráfrases dos mortos muito vivas. Você sabe o que é ter? Às vezes, quando você algo tem, alguém pode vir e tomar isto de você. Mas quando você dá, você deu; é seu para sempre. Isso é o que é ter. Ninguém pode vir tomá-lo de você. Veja — é distanciamento esse negócio de dormir perto. Nunca se esquece alguém com quem se dormiu. Também pudera, não me esqueço de tantas coisas. Abro a porta: saio: enxergando tudo, ainda que no escuro. Estou longe de onde eu me posso ver. Antes, vigio o espelho. Minha nudez é obscura. Engulo minha seca saliva. Experimento o ar enclausurado do restante da casa. As janelas estão abertas. Me sinto preso, enclausurado e esquecido. Que sorte a minha, penso, poder sentir-me assim. Alguns por aí, outros, são lembrados o tempo todo. Coitados sem-paz. Não sabem que ser esquecido é tornar-se finalmente alguém, depois não sendo. É ter de graça existido. Ser esquecido é ter um momento, desses que todos precisamos, para começar de novo; tão bom quanto esquecer. Que bênção: esquecer. Eu, porém, me lembro. De que vale isto? O tal lembrar? Qual significado isto tem: a coisa absurda que fazemos, de guardar dentro do eu os anteriores momentos? E estes (os momentos), são não apenas conjuntos de sentidos e sensações? A junção falha do que se viu e ouviu? Pra quê? Hein, pra quê ver e ouvir? É isso o que me torna gente? Guardar aquilo que vi e ouvi? Pois não quero mais ver, nem ouvir, e nem guardar. Também não quero ser gente — nunca quis. Qual a graça é que tem, em ficar revisitando tudo? Como seria bom se fosse sempre tudo novo e um. Tudo no mundo começou com um sim. Vê-lo dormir como o vi pela primeira vez. Sentir o sol toda manhã como o sentir em meu primeiro domingo. Caminhar à noite e dentro da noite e com a noite como caminhei em primeira escuridão, certo e errado. Porquê quando é primeiro, também é último. Nada é passível de ser primeira vez de novo. Porisso todas as primeiras coisas são últimas em si mesmas, sem alarde, sem feiura, sem desgaste e sem culpa. Daí que vamos deixando pela metade as coisas findas. E o desistir nem assim é o mesmo que perder. Pode ser, às vezes, ganhar. Nunca se ganha muito ganhando. Não sabe que é preciso perder para compreender a magnitude do seu contrário? Da mesma maneira a solidão é armadilha viva cheia de dentes grandes. É necessário estar acompanhado para sentir quando as presas abocanham os nossos pés. Me compreende? Se me fosse concedido um milagre, eu esqueceria, é o que eu pediria. Tal como as portas esquecem quem um dia passou por elas. Como as camas esquecem quem um dia nelas se deitou. E mesmo que as maçanetas guardem as marcas ilógicas das mãos, as digitais, de lá vem a poeira para recobrir tudo. E mesmo que o corpo deixe as marcas no lençol, lá vem o outro corpo, mexendo-se em sono e sonho, desfazendo as marcas com outras marcas, outras dobras, outras nuances de um mesmo deitar-se. E se me perguntassem: o que eu não quero nunca ser, diria: livro. Os livros, é uma pena, nunca esquecem de quem os leu. As páginas continuam dobradiças onde foram seladas e as capas marcadas pelas unhas onde foram arranhadas e as lombadas quebradas onde foram forçadas e as letras, as palavras, meu Deus, coitadas!, estas nunca esquecem de quando foram lidas, será por quê?

Gosto tanto de você, corpo deitado. Espero que um dia, quando eu-me embora for, a tua memória te conceda esta graça de esquecer que noutras noites tu comigo dormiu. Deixar para trás é forma linda de carinho, também. Nada do que é esquecido, morre. Porque é no silêncio, nos vãos entre o sim e o não, onde as coisas mais bonitas ficam guardadas.

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