O guará e o mar

Gabriel Muney
10 min readDec 14, 2023

“A cloudless september maddened the crickets.” (Vladimir Nabokov.)

(…) a primeira vez, assim me contou — e ai de mim se duvidar — , que se soube, porém não muito claro havia sido, e desde sempre sendo uma vez única após e antes então, que o tempo, embaralhado, deixou lhe confundir, feito inteiro de promessas e pausas, ocorrendo enfim, como me disse, um fato posterior a interferir no passado, por seu retroativo impacto entrefuturo, desfazendo-se por inteiro.

Comum como o erro, sonhou que haveria de encontrá-lo, e que ele a beijaria com tanta vontade quanto um projétil perfura o crânio, e por doce consequência, ele haveria de ruminar qualquer feitio, crença ou paranóia, de que ela o encontraria fosse qual fosse a acentuação dos parágrafos inescritos.

Máire pintou-o com a delicadeza das mãos de um monstro; e não decorá-lo pôde, como a imagem dispersiva de um dormir faz ver, seus olhos limão e malva, enfeitiçando gritos, corais e libélulas, verde como água suja, rosa como o sangue que corre nas veias da beleza, e dum mexer-se agudo cantou uma estória. No centro do quadro, de pinceladas absolutas reencontrou esculpido pela bruma das cores caleidoscópicas em luz fluida e cambiante atormentadas e/ou interrompidas por linhas e formas mais sugestivas do que definidas juntas de sólidos elementos simbólicos os fragmentos da desconexa memória. Flores efêmeras desabrocham em torno dele; o amor em fuga. Nada no mundo desperto pode ser mais bonito do que as mãos interpretando os olhos ao lado de uma orquestra com violinos violoncelos contrabaixos harpas trompetes trombones trompas tubas e quando tudo se manifesta junto o universo colapsa como bolhas azuis em esferas iguais ensanguentadas de tristeza amarradas em cordas que se esbatem como correntes de poeira invisíveis e intransponíveis cheias cheias cheias de uma misericórdia que lhe irá dilacerar em micro-micro-micro partículas basta somente que se deite e contemple e adore até que se veja sendo absorvida de novo pelo tempo que isto fará em evaporações pluviais e todo o solo puder ver rachar num único e último trovoar de sombra caindo junto da chuva fazendo-a pequeníssima arrastar-se livre e invisível pela atmosfera em minúsculas gotas.

— Alguém um dia me beberá no copo — disse.

Do outro lado, Garau concluía sozinho com lágrimas de que Máire não existia e nem poderia existir. Ouviu dizer que em sonho só podemos observar o rosto de quem já vimos antes e, no entanto, certo estava de que jamais havia visto tal sacro semblante em gente viva.

Descreveu-a com a brutalidade da ponta do lápis em fichas soltas e, se por um instante a imaginava combalida de tristeza, noutro momento a contemplava alegre como o sabor e o cheiro de uvas pisadas. Serpenteou ingênuo as linhas, desenhou ao e em redor estrelas vazias e desordenadas, descreveu-a linda e feroz, de dentes arredios e amarelos, saboreando a fruta da estação, por entre os vãos dos dedos escorrendo, dispendiando, uma pele cinzenta como ouro enterrado e nunca descoberto, com a paixão de uma só vez alimentando fúria e rancor, entremordendo o quadro branco e pelas beiradas tomando forma de delicada ave, e de tantas versões se fez impossível notar que contrastavam, combaliam e contradiziam a mesma mulher desfrenteforme, conquanto apenas por neologismos se deixava descrever, a mulher comendo a mangaba, a manga, a goiaba, teus criques-craques fanhos fazendo alusão indireta ao estado de amor, este também impossível de ser visto que, como ele é, e nunca deixou de ser, inacessível ao homem e assumindo outras petulâncias, ao cair de uma palavra abstrata o suficiente para tornar o sol obsoleto das folhas, as pernas obliteradas do corpo, o descrever expungido da literatura, eis que cansou, como dito antes que se cansaria, dum trêmulo dizer, dito, dum arrojo, aferram-se.

— Ainda te mastigo na boca e engulo — disse.

Também Máire teve de pintá-lo em diferentes caimentos, luzes e rostos, como Garau houve de escrevê-la tantas vezes e outras-outras vezes a fim de conhecê-la ele mesmo por suas mãos e frases, ela mesma por suas mãos e cores.

É que se amavam.

E a cada noite um visitava o outro na cama.

Como agora, enquanto tu os lê, Garau a vê em sonho com os longos cabelos diferidos dos curtos da noite passada, numa visita que ela o faz, saiba, quando a fera comerá a presa pelo menor movimento que ousar, e dentro do azul das pálpebras, aproximam-se um do outro, em movimentos feito de agulhas flutuando em ato de graça, e ansioso por querê-la de si sua voz — escrita, reescrita, em diversos sons e sombras e sabores — ele a faz certa pergunta chula só para ouví-la dizer sim-não ou talvez; Máire abre a boca e Garau lhe interrompe os lábios com um só dedo. Olha-na tão de frente quanto qualquer ângulo se faria irredutível, olha-na ininterruptamente com a longuidão de um advérbio na língua portuguesa, olha-na tão bem que lhe decora as linhas e poros, olha-na em detalhe e pequenezas na boca e no buço, olha-na devagarinho e rapidíssimo, olha-na dentro dos olhos e são vermelhos, olha-na e quer dá-la um beijo, insensível beijo, fantástico beijo, impossível beijo, até que um vulto lhe tome das mãos o papel, com que ele dormiu de olhos abertos para olhá-la, da cabeça recostada no intenso regurgitar das paredes brancafrias, interrompendo-lhe o sonho, onde com o lápis e a imaginação ele cuida para retornar a olhá-la, percebendo que já a esqueceu, como todas as vezes em que sonhou olhando-na de perto ou de longe, cabendo a si, por fim, a tarefa doce e vazia de inventá-la, quando tantas mulheres Máire foi, branca ou parda ou mais nova ou mais velha ou vermelha ou verde com longuíssimos ou curtíssimos cabelos, Máire foi, Máire é, Máire sendo o explodir de uma galáxia em cada um desses encontros, espiralando e remoendo partes de si e outras, são fichas, muitas delas, em que ele escreve, onde Máire já se repete em versões, quando as muitas não se bastam e se pescam, quis ele formar uma imagem verossímil baseado nas contradições que escolheu, inventou, sobre Máire, mulher silenciosa, criando também dela a voz, que lhe calou, e só para observá-la, olhá-la, adivinhá-la, esqueceu, e novamente outra vez de novo a esboçou e escreveu, com a cadência de um sonhar indizível, e a solidão como um vazio no bolso.

É que se amavam.

E a cada noite um visitava o outro na cama.

Como agora, enquanto tu os lê, Máire o vê em sonho com os dedos livres e solares transmitindo dormências e carícias, numa visita que ele a faz, saiba, em que a fera está enjaulada dentro de si própria, e dentro do cortante véu iniluminando, ela o escuta voz-a-voz fio-a-fio quando o quer ver em cores saturadas num jardim de flores conspícuas de abelhas com triplos ferrões, e num só átomo de luz em que Garau se deitaria por pouco Máire o empurra para trás, voltando e revoltando, e as sombras reinventam padrões inexprimíveis. Escuta-o tão de perto o que lhe diz, que as aves passeiam pelas bordas e comem da areia, que as flores fornecem o caule para maiores cheiros, que as mortes sobrevivem a vida porque são passageiras tal como os vivos fazem passar, que as miragens a qual os olhos vêem a retina é quem os dá cor, que os ombros dele são caídos e corcundos como ela gostaria de tocá-los, que na boca há um cigarro pela metade queimado, que a solidão se entrava como a paisagem cruel deslocada de algum alguém, que o amor é uma coisa feia e fedida que deveríamos todos experimentar, que o horror tem para ser de igual-a-igual ou não seria horrível tanto quanto se quis. Ouve-no tão rente ao ouvido quanto qualquer dimensão fere os tímpanos, ouve-no interrompida com a lentidão de um verbo intransigente, ouve-no tão mal que decora os versos e ritmo como dum épico antigo, ouve-no faltante e fútil fora da boca e buço, ouve-no devagaríssimo e rapidinho, ouve-no por dentro da língua e são palavras ocas, ouve-no e quer dá-lo um beijo, doído beijo, realístico beijo, até que um barulho lhe entregue nos dedos o pincel, com que ela acordou sobrevoando a tela para ouvi-lo, da cabeça petrificada num lamear das plantas verdemornas, interrompendo-lhe o sonho, onde com as cerdas e a imaginação ela cuida para retornar a ouvi-lo, percebendo que já o esqueceu, como todas as vezes em que sonhou ouvindo-o de perto ou de longe, cabendo a si, por fim, a tarefa amarga e trabalhosa de inventá-lo, quando tantos rapazes Garau foi, pardo ou marrom ou mais velho ou mais novo ou azul ou magenta com longuíssimos ou curtíssimos dedos, Garau foi, Garau é, Garau sendo o abolir de uma estrela em cada um desses encontros, caoteando e dispersando partes de si e outras, são telas, muitas delas, em que ela pinta, e Garau já se repete em versões, quando as muitas não se bastam e se pescam, quis ela formar um retrato surrealista baseado nas cores que escolheu, misturou, sobre Garau, rapaz sem-rosto, criando também dele a feição, que lhe impediu alcançar a luz, e só para construí-lo, ouvi-lo, adivinhá-lo, esqueceu, e novamente outra vez de novo o esboçou e pintou, com a cadência de um sonhar invisível, e a solidão como uma presença que preenche tudo.

É que se amavam.

Ela, queria encontrá-lo; ele, queria-na encontrante. Portanto, de noite em noite, sonho em sonho, Máire foi juntando linhas, esferas, quadrados, e os reproduzindo com a fidelidade de uma memória sonhada por sobre a tela, enquanto Garau acumulava descrições de ruas, pavimentos e prédios, escritos em fichas, versos e guardanapos, até juntar-se todos com a complexidade de um mapa, em tela-dela e texto-dele, sabendo ela que deveria encontrá-lo na Rua A., sabendo ele que deveria ser encontrado na Rua Z.

Certa manhã Máire entulhou-se debaixo de seu guarda-sóis e, simultaneamente, certa noite Garau embrulhou-se dentro de sua capa-de-chuva e, no horário marcado através da intuição de ambos, saíram pelas ruas de Florilumes procurando um ao outro nos caminhos em que sobrevieram conhecer-se em códigos sonhados. Subiu ao norte, ela, seu sorriso tremia na face e não podia se desgrudar da imaginação de beijá-lo e, pelo mesmo caminho, descia ao sul, ele, com sua rouquidão e maciez de rosto rígido o qual não podia se deixar livrar da insegurança de beijá-la e, numa mesma direção para frente Máire observou o trem regurgitar-se e tremelicar com a força de uma pedra que afunda rio adentro e, numa mesma direção para trás Garau observou o trem encaminhar-se com a suavidade e o silêncio de um urubu que sobrevoa um corpo em putrefação pois, numa distância nula, eles se desencontravam como dois relógios de ponteiros invertidos tão lúcidos quanto o Diabo diante de Deus pois, numa distância pouca, eles se reintroduziam um na realidade d’outro como a escrita e a pintura haveriam de participar dum mesmo movimento artístico dizendo coisas tão diferentes já que, por uma alusão assintomática, diziam a mesma coisa com bocas de formatos distintos e, fechando seu guarda-sóis para sentir a quentura queimar seus ombros Máire num instante chegava à Rua A., exatamente àquela em que ele orientou que ela o encontrasse e, despindo-se de sua capa-de-chuva para sentir as gotas molharem seus cílios Garau num instante chegava à Rua Z., exatamente àquela em que ela orientou que ele a esperasse.

É que se amavam. Mas, não havia ninguém lá e lá; ela não o encontrou, ele não a esperava.

E poderíamos parar por aqui acaso bastassem o espectro dócil das ilusões e dos sonhos. Ainda há, no trato concomitante que faço escrevendo com quem me lê, de ter um final como as eras imaginavam seus começos. O vento embrionário enervante da chuva, o frio calorento inexposto do sol, me diz que ela e ele se espiritavam para fora do espaço demarcado e corroíam ferrugenantemente longos as paredes descascantes da estória, da compreensão e da linguagem. Sentou-se ele num parapeito, e a chuva caía, ficando ela de pé recostada a um poste, e o sol feria, sem saber, conversando entre si, em tempos de possibilidades inadequadas e opostas, em ruas de diâmetros com exatidão distantes em muitos metros; lá e aqui um ao outro:

— Me machuca que não apareça.

— Te machuco se não apareço — disse, nem ouvindo-o, nem sabendo que estava-o respondendo.

— Te espero.

— Te procuro.

— Quero de ti a mente e as mãos — olhou a noite escura.

— Quero de ti a mente e os olhos — tocou o vazio diante da claridão.

— Beijá-la.

— Beijá-lo.

Por pouco perceberam que compreendiam mútuos e inanes a linguagem invisível das cores e das palavras, e que estavam no mesmo lugar, no mesmo momento, só não podiam ver-se. (Em diferentes tempos.)

É que se amavam.

E dentro da efusão transcendental desse amor, ultrapassando os paradigmas terrenos, ambos coalesceram-se como essências recíprocas da criação, fundindo a mente e o corpo num anteouvir subliminar. Máire, enamorada do rapaz que reproduziu meticulosa em inúmeras telas; Garau, cativado pela mulher que descreveu minuciosa em incontáveis fichas. Não de um, nem de outro, souberam os nomes; mas, representados e descritos de forma tão completa, alcançaram uma realidade simbiótica, entrelaçando-se nos vãos e fossos do tempo, um existindo como o reflexo antitético do outro: eram a mesma pessoa. Não foi o ato de sonhar com ele que a impeliu a retratá-lo como o personagem multifacetado em seus quadros, mas sim o sonhar subsequente à sua pintura que gerou o impulso para que ela o pintasse antes; analogamente, não foi o ato de sonhar com ela que instigou a sua caracterização em contos, permeados por infindáveis parágrafos, mas sim o sonhar após tê-la descrito que gerou o ímpeto para que ele a pintasse anteriormente. Assim como o pensamento confere realidade a tudo, o sonho ressignifica o real do passado e o reposiciona no domínio do porvir. Contrários na opacidade de esferas, magnetizados como ímãs que se movem e interferem na aproximação, ele a sonhava, e ela não existia; ela o sonhava, e ele não existia. E ambos existiam simultâneos como faróis em praias de costas distintas, como um guará que migra do litoral nordestino ao mar do sul, como o sol que evapora a água para que chova depois, quando é preciso chover antes para que o sol possa, então, empreender a evaporação.

Disse-me o vento, que alimentado de repetições, esta foi (…)

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